domingo, 29 de março de 2020

Para leres mais no regresso à Biblioteca


Isabel Zambujal, Histórias escritas na cara,  Oficina do Livro, 2008. Ilustração de Madalena Ghira

Das linhas que lhe atravessavam o rosto, a avó da Clara desfiava histórias e memórias. Lado a lado, abraçadas à frente de um espelho, a velhice reencontrava a infância.

«As histórias de que a Clara mais gostava era daquelas que estavam escritas no rosto da avó: por curtas ou compridas linhas junto aos olhos, perto da boca ou na testa, por pequenas sardas instaladas na ponta do nariz e até por uma cicatriz que lhe dava um ar de eterna traquinas.
O ritual era sempre o mesmo: fosse nas noites com espírito de Natal, ou naquelas que cheiravam a Verão, a avó passava os serões a contar as experiências de vida à Clara. Só o cenário mudava: no Inverno, as personagens juntavam-se à avó e à neta na enorme lareira da cozinha, onde se secavam os chouriços e se assavam as maçãs para fazer puré temperado com pau de canela; e, nas noites mais quentes, as histórias contavam-se na rua, mesmo ali à porta de casa, e eram acompanhadas pelo cantar dos grilos e das cigarras.
Um velho espelho com moldura de nogueira (que já devia ter quase tantos anos como a árvore centenária!) estava sempre no colo da Clara, que por sua vez se sentava ao colo da avó. E, de dedinho espetado, a menina percorria a cara da senhora, fazendo perguntas para ouvir o passado tão presente naquele rosto.
-- Aqui estas duas pequeninas foram as primeiras, não foram , avó?
-- Tens mesmo boa memória, Clara. Eu conto-te a origem destas duas marcas, junto aos cantinhos da boca.
Eu devia ter para aí uns quatro anos. Ainda me lembro do que vestia: era um bibe de pano azul-petróleo com uma casinhas brancas bordadas por uma vizinha habilidosa. Estávamos em Setembro, no tempo das amoras silvestres, e a minha mãe andava com as outras mulheres a preparar os bolos para mais um casamento na aldeia. Já naquela altura se fazia o mesmo: o bolo da noiva era um suspiro gigante com vários andares; acreditavam que ia dar sorte à nova família que daí viria.
Como te dizia, as mulheres encontravam-se muito atarefadas com as iguarias e, para eu não ficar ali só a atrapalhar, o meu pai decidiu levar-me para a pesca.
Ele e o seu amigo Manuel das lebres (gostava tanto destes bichinho que até lhes tinha ficado com o nome) iam com alguma frequência para as margens do rio pescar barbos e enguias.
Naquela tarde, depois da hora da sesta, partimos os três a cavalo, e eu, sentada numa sela de pele avermelhada, sentia-me uma princesa naquele reino dominado por Dom Senhor Meu Pai.


Quando chegamos à parte mais funda  do rio, paramos, e o meu pai estendeu uma manta, ou melhor, um manto, junto a uns arbustos carregados de amoras silvestres. O que os “pescadores” não sabiam é que eu era mais rápida a apanhar as amoras do que eles o peixe. Aquelas deliciosas guloseimas da natureza estavam mesmo à mão de semear, e quando deram por mim tinha as casinhas do vestido pintadas de vermelho e a minha boca mais parecia a de um palhaço.»

Isabel Zambujal: https://www.mercart.pt/wp-content/uploads/2019/10/the-art-of-isabel-zambujal-mercart.jpg

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