sábado, 27 de fevereiro de 2021

A arca do tesouro - para leres no regresso à escola

A arca do tesouro (excerto)

Alice Vieira

 


«De cada vez que acaba a chuva, o vento, as tardes escuras e as manhãs geladas, há uma voz que rompe das raízes das árvores adormecidas e entra no coração das pessoas. Então as pessoas abrem os olhos devagar, muito devagarinho, porque a voz que agora as habita lhes murmura:

— Chegou o tempo de não ter pressa.

E os dias duram muito mais, porque o Sol se deixa ficar pendurado no céu muito mais tempo, e estende os seus braços e entra na terra, na areia da praia, no cabelo das mães, nos gelados que se derretem nas mãos das crianças.

Mas enquanto dura a chuva, o vento, as tardes escuras e as manhãs geladas — é tudo muito diferente.

Maria não gosta desse tempo.

Porque então as pessoas ficam com uma voz áspera, suportando mal o cheiro da humidade entranhado nas camisolas e nos casacos. Espirram, têm tosse, gritam, respondem torto, têm saudades dos amigos que desaparecerem, protestam por tudo e por nada.

Até a mãe de Maria fica, nesse tempo, igualzinha às outras pessoas — e às vezes diz palavras que magoam. E não se pode culpar ninguém: é a chuva, o vento, as tardes escuras e as manhãs geladas que as fazem ficar assim. Com voz e olhos e coração de inverno.

Nada a fazer.

É nessas alturas que Maria vai buscar a sua caixa de tampa azul. Azul, cor do céu quando o mau tempo abranda.

Foi a avó que lhe deu essa caixa. Num dia em que ela tinha chorado a tarde inteira. Porque na véspera o pai tinha chegado a casa muito tarde e, quando Maria correra a sentar-se no seu colo, ele dissera, com uma terrível voz de inverno:

«Já estás muito crescida para colo»

e quase a enxotara como se enxota um gato que nos aborrece. O gato que Maria estava sempre a pedir.

«Era só o que faltava nesta casa…», resmunga ele.

Então a avó passou-lhe para as mãos uma caixa redonda com uma tampa azul (azul como céu quando o mau tempo abranda) e disse-lhe:

«É a tua arca do tesouro»

Maria olhou para dentro da caixa, mas não viu tesouro nenhum. Nem tesouro nem outra coisa qualquer. Nada de nada. A caixa estava completamente vazia…

— Aqui não há tesouro nenhum… — murmurou ela.

A avó deu uma grande gargalhada. (A avó nunca tinha voz de inverno.)

— Claro que não! O tesouro és tu que o vais por aí dentro!

Maria não estava a entender nada. Que tesouro? E onde ia ela agora descobrir um tesouro? E quanto custava um tesouro? A mãe estava sempre a dizer que não havia dinheiro para nada e que por isso é que o pai chegava a casa cada vez mais tarde…

Então a avó explicou-lhe que há muitos tesouros mesmo, mesmo à nossa beira, só que nós é que não damos por eles. Às vezes — disse a avó —, quando te aborreces com alguém, ou quando alguém te magoa, mesmo sem quere (como ontem o teu pai, por exemplo), não te apetece gritar, dizer palavras desagradáveis, sei lá, o que te vier à cabeça?

Maria sorriu e nem respondeu.

— Então, nessas alturas, vais buscar esta caixa, e deitas cá para dentro todas a as palavras que te apetece dizer! Todas, todas, todas! Palavras más, boas, feias, bonitas, curtas, compridas, fáceis, difíceis, simpáticas, antipáticas… Palavras que só tu conheces, palavras que nem tu conheces, palavras que nem existem em língua nenhuma… E vais ver como tudo fica diferente à tua volta.

Maria pegou na caixa, com muito cuidado, como se um verdadeiro tesouro já estivesse lá dentro.

Mas avó ainda não tinha contado tudo. Porque não era só para isso que a caixa servia…»

 


 VIEIRA, Alice, A arca do tesouro, Editorial Caminho, 2016


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Para leres mais no regresso à escola: O senhor do seu nariz

 O Senhor do seu nariz (excerto)

Álvaro Magalhães

 

«(…) Foi então que apareceu a fada. Tinha duas asas fininhas que a mantinham no ar e uma saia cor-de-rosa, muito rodada, que já não se usava.

Não foi convidada, mas apareceu. Foi o que lhe deu. Pousou a mão na minha testa e disse:

— A vida deste rapaz vai dar para o torto.

— Não diga isso – pediu a minha mãe, muito aflita.

— Digo, pois – voltou a fada. – Ele terá um nariz do tamanho de um chouriço. Por isso…

E foi mesmo isso que aconteceu. O tempo ia passando e o meu nariz crescia mais depressa do que eu. Quando parei de crescer tinha um nariz a perder de vista, mas continuava optimista. Um nariz do tamanho de um chouriço? Podia ser pior, dizia eu. E agora pergunto: não era pior se fosse do tamanho de um presunto?

Era desagradável ser tão diferente do resto da gente, mas que havia de fazer se era esse o meu destino? Quanto ao meu nariz imponente, também era pesado e obrigava-me a andar inclinado para a frente. Tinha dores nas costas desde pequenino.

E não era em todo o lado que cabíamos os dois. Havia sítios onde só ele ia. Eu esperava, cá fora. Ou vice-versa. Tanta vez que isso aconteceu: ou entrava ele, ou entrava eu. E não era só isso. Ele chegava antes de mim a todo o lado. Quando eu entrava já ele tinha lá estado. Era aborrecido, não digo que não, mas habituei-me, que a gente habitua-se a tudo. Até a um nariz do tamanho de um chouriço. Por isso…

Aliás, também havia coisas que corriam bem e chegavam para me fazer feliz. Nas corridas, por exemplo, ganhava sempre por um nariz. E, claro, cheirava como ninguém, pois então. As pessoas cheiravam o mar, os bosques e as flores, eu cheirava o mar, os bosques e as flores como nem o mar, os bosques e as flores sabem que são. Mas havia mais: para saber o que estava a acontecer bastava-me cheirar. E sabia o que em cada casa, nesse dia, havia para o jantar. Se me esforçasse e cheirasse mais forte, mais fundo, era capaz de perceber o que alguém estava a fazer num recanto qualquer do outro lado do mundo.

Custa a acreditar, mas é verdade. Aliás, bastava-me cheirar quando estava esfomeado. Fechava os olhos e para ali ficava, a saborear aquilo de que mais gostava. Chegava a ficar enfartado.

Porém, nem tudo corria bem. Com um nariz tão grosso e tão comprido, nunca passava despercebido. Estavam sempre a olhar para mim e a apontar-me um dedo. E as crianças fugiam quando me viam, cheias de medo. Os outros também. E não era esse o único inconveniente. Também derrubava as pessoas quando me virava de repente. Talvez por isso, pouca gente se chegava a mim, ou passava perto, e sítio onde eu chegasse logo ficava deserto.

As pessoas diziam que metia o nariz em todo o lado, mesmo onde não era chamado. Ninguém gostava. Mas que havia eu de fazer? Ele era o primeiro a chegar. E cheirava, cheirava. Ficava logo a saber se as pessoas tinham tomado banho naquele dia, ou mudado a roupa interior, o que tinham almoçado e por onde tinham andado. Se não estivesse constipado e a fungar era até capaz de cheirar o que elas estavam a pensar. O problema, diziam as pessoas, não era ser do tamanho de um chouriço. Era ele ser metediço.

Eu é que tinha de o carregar, de espantar os pássaros que nele pousavam e os ratos que o queriam roer, à noite, sem saberem que me estavam a roer a mim, e os outros é que se queixavam, mas enfim.

Estava visto que o mundo não era para gente com um nariz assim, do tamanho de um chouriço. Por isso fui-me afastando e…»

 

MAGALHÃES, Álvaro, "O senhor do seu nariz", em O senhor do seu nariz e outras histórias, Porto, ASA, 2013