segunda-feira, 30 de março de 2020

Para leres mais no regresso à Biblioteca.

Luísa Ducla Soares, O Capuchinho Vermelho no século XXI, Porto Editora, 2015

O que dirias se acabasses de chegar do mundo dos contos de fadas? O que acharias de ver a floresta transformada em ruas e prédios? E… onde está o lobo? Será que lhe aconteceu alguma coisa desagradável?


«A Menina do Capuchino Vermelho estava farta de viver num tempo antigo, num livro antigo.
Apanhou um dia o João, muito entretido a ler a sua história, e disse-lhe:
-- Ajuda-me a saltar para o século XXI.
- Boa ideia! – exclamou o rapaz. – Vem daí.
A garota pousou os pés no chão da sala, olhando à sua volta, espantada.
-- Repara, está um elefante junto da tua janela.
Ele riu-se.
--Impossível! Eu moro no décimo andar. Aqui só chegam os pássaros.
A menina olhou para a televisão.
Mexendo no comando, o amigo mudou de canal e logo apareceu, por trás do vidro, o fundo do mar.
-- Afinal tens uma caixa mágica – concluiu ela, preparando-se para ficar toda a tarde a ver filmes.
Mas o João tinha combinado ir visitar a avozinha.
-- Veste o casaco azul –recomendou a mãe. E leva uns bolinhos à avó Maria.
O rapaz vestiu o casaco, deu a mão à menina e saíram juntos.
-- Esqueceste-te dos bolinhos que a tua mãe fez…
Como resposta, o rapaz entrou com ela no supermercado.
-- Aqui é que eu compro os bolos. A minha mãe passa o dia a trabalhar num escritório, não tem tempo para fazer gulodices.
A rapariga ficou admirada com aquela loja gigantesca. Esfregou os olhos, pois parecia que estava num sonho. Para mostrar que era crescida e ajuizada, aconselhou:
-- O melhor é não irmos pela floresta, que aí podemos encontrar o lobo mau.
O João desta vez não se riu. A floresta à volta da cidade ardera no Verão. Tinham-lhe deitado fogo para construírem mais prédios.
E eu que gosto tanto de florestas… - choramingou a Capuchinho Vermelho. – Nem posso pensar no mundo sem o verde das árvores, os bicharocos selvagens…
Iam a atravessar a rua quando… zás! Surgiu um carro a grande velocidade. As crianças fugiram para o passeio, mas o veículo ainda embateu no saco de bolos do supermercado. Ficaram feitos numa papa.

-- Cuidado! – gritou um polícia…»

Podes ler este livro na Biblioteca do Pontal

domingo, 29 de março de 2020

Para leres mais no regresso à Biblioteca


Isabel Zambujal, Histórias escritas na cara,  Oficina do Livro, 2008. Ilustração de Madalena Ghira

Das linhas que lhe atravessavam o rosto, a avó da Clara desfiava histórias e memórias. Lado a lado, abraçadas à frente de um espelho, a velhice reencontrava a infância.

«As histórias de que a Clara mais gostava era daquelas que estavam escritas no rosto da avó: por curtas ou compridas linhas junto aos olhos, perto da boca ou na testa, por pequenas sardas instaladas na ponta do nariz e até por uma cicatriz que lhe dava um ar de eterna traquinas.
O ritual era sempre o mesmo: fosse nas noites com espírito de Natal, ou naquelas que cheiravam a Verão, a avó passava os serões a contar as experiências de vida à Clara. Só o cenário mudava: no Inverno, as personagens juntavam-se à avó e à neta na enorme lareira da cozinha, onde se secavam os chouriços e se assavam as maçãs para fazer puré temperado com pau de canela; e, nas noites mais quentes, as histórias contavam-se na rua, mesmo ali à porta de casa, e eram acompanhadas pelo cantar dos grilos e das cigarras.
Um velho espelho com moldura de nogueira (que já devia ter quase tantos anos como a árvore centenária!) estava sempre no colo da Clara, que por sua vez se sentava ao colo da avó. E, de dedinho espetado, a menina percorria a cara da senhora, fazendo perguntas para ouvir o passado tão presente naquele rosto.
-- Aqui estas duas pequeninas foram as primeiras, não foram , avó?
-- Tens mesmo boa memória, Clara. Eu conto-te a origem destas duas marcas, junto aos cantinhos da boca.
Eu devia ter para aí uns quatro anos. Ainda me lembro do que vestia: era um bibe de pano azul-petróleo com uma casinhas brancas bordadas por uma vizinha habilidosa. Estávamos em Setembro, no tempo das amoras silvestres, e a minha mãe andava com as outras mulheres a preparar os bolos para mais um casamento na aldeia. Já naquela altura se fazia o mesmo: o bolo da noiva era um suspiro gigante com vários andares; acreditavam que ia dar sorte à nova família que daí viria.
Como te dizia, as mulheres encontravam-se muito atarefadas com as iguarias e, para eu não ficar ali só a atrapalhar, o meu pai decidiu levar-me para a pesca.
Ele e o seu amigo Manuel das lebres (gostava tanto destes bichinho que até lhes tinha ficado com o nome) iam com alguma frequência para as margens do rio pescar barbos e enguias.
Naquela tarde, depois da hora da sesta, partimos os três a cavalo, e eu, sentada numa sela de pele avermelhada, sentia-me uma princesa naquele reino dominado por Dom Senhor Meu Pai.


Quando chegamos à parte mais funda  do rio, paramos, e o meu pai estendeu uma manta, ou melhor, um manto, junto a uns arbustos carregados de amoras silvestres. O que os “pescadores” não sabiam é que eu era mais rápida a apanhar as amoras do que eles o peixe. Aquelas deliciosas guloseimas da natureza estavam mesmo à mão de semear, e quando deram por mim tinha as casinhas do vestido pintadas de vermelho e a minha boca mais parecia a de um palhaço.»

Isabel Zambujal: https://www.mercart.pt/wp-content/uploads/2019/10/the-art-of-isabel-zambujal-mercart.jpg

sábado, 28 de março de 2020

Para leres no regresso à Biblioteca...


O meu pai é um homem-pássaro é a história de um homem que queria voar. Queria tanto que deu asas à imaginação... e não só. Um dia, ele e a sua filha saltaram para o ar e bateram as asas para ganharem um prémio: seriam os primeiro a atravessar o rio Tyne a voar!
  • David Almond é um autor britânico nascido em 1951.  escreve para crianças e jovens adultos. Publicou a sua primeira obra em 1985. Recebeu vários prémios literários, entre estes o prestigiado prémio Hans Christian Andersen, de literaura infantil, em 2012.
Para aguçar o apetite:



David Almond, O meu pai é um homem-pássaro, Editorial Presença, 2008


«Era uma manhã de Primavera, como tantas outras, no n.º 12 de Lark Lane. Lá fora, os pássaros chilreavam e piavam. O trânsito da cidade atroava e estrondeava e o despertador de Lizzie tinia e retinia. Ela saltou da cama, lavou o rosto, esfregou bem atrás das orelhas, lavou os dentes, escovou o cabelo, vestiu o uniforme escolar, desceu, encheu a cafeteira elétrica, ligou-a, pôs pão na torradeira, pôs a mesa com dois pratos, duas canecas, duas facas, leite, manteiga e geleia, e depois dirigiu-se para o fundo da escada.

-- Pai! – chamou. – Paizinho!

Nenhuma resposta.

-- Paizinho, são horas de se levantar!

Nenhuma resposta.

-- Se não se lavar já eu subo e...

Pisou ruidosamente o primeiro degrau e, a seguir, o segundo.

--Vou subir! – gritou.

Ouviu um resmungo e um gemido e, depois, nada.

-- vou contar até cinco. Um... dois... dois e meio... Paizinho!

Lá de cima chegou um grito abafado.

-- Espera aí, Lizzie! Espera aí!

Ouviu-se um estrondo e outro gemido e, depois, ali estava ele, mal ajambrado num velho roupão e chinelos rotos, com o cabelo todo desgrenhado e a barba por fazer.

-- Desça, ande – disse Lizzie.

Ele desceu aos tropeções.

-- E não olhe para mim dessa maneira.

--Não, Lizzie.

Com um puxão, ela endireitou-lhe os ombros do roupão.

-- Olhe para si! Está num bonito estado. Que diabo esteve a fazer lá em cima?

Ele sorriu.

-- A sonhar – respondeu.

A sonhar! Que homem este. Agora sente-se à mesa. Sente-se direito.

-- Sim, Lizzie.

Sentou-se na beirinha da cadeira. Tinha os olhos brilhantes e entusiasmados. Lizzie encheu-lhe uma caneca de chá.

-- Beba – disse, e ele bebeu um golinho. – E coma essa torrada. – Ele mordiscou um vanto da torrada.

Coma-a como deve ser, pai. – Ele deu uma dentada maior. E mastigue. Ele mastigou, durante uns momentos. – E engula, paizinho. – Ele sorriu. – Sim, lizzie. – Deu uma grande dentada, mastigou, engoliu e escancarou a boca para ela ver o seu interior.

- Engoli tudo. Estás a ver?

Ela deu um estalo com a língua e desviou os olhos.

-- Não seja tolo, paizinho.

Endireitou-lhe o cabelo e penteou-o. Endireitou-lhe a gola do casaco do pijama. Sentiu o restolho denso da barba no queixo dele.

-- Tem de cuidar de si. Não pode continuar dessa maneira, pois não?

O pai abanou a cabeça.

-- Não Lizzie. Com certeza que não, Lizzie.

-- Hoje quero que tome um duche, faça a barba e se vista como deve ser.

-- Sim, Lizzie.

-- Muito bem. E quais são os seus planos para o dia?

Ele endireito-se na cadeira e fitou-a.

-- Vou voar, Lizzie. Como um pássaro.

A filha revirou os olhos.

-- Ah, vai?

-- Vou, sim. E vou participar no concurso.

-- No concurso? Que concurso?

Ele riu-se, inclinou-se para a frente e agarrou-lhe o braço.

-- O Grande Concurso do Homem-Pássaro, evidentemente! Não ouviste falar nisso? Vem à cidade! Ouvi dizer isso ontem. Não, anteontem. Ou naquele dia, fez na última terça-feira uma semana. O que interessa é que o primeiro a atravessar o rio Tyne a voar ganha mil libras. E eu vou concorrer. É verdade, Lizzie. É realmente verdade. Vou ganhar! Vou, finalmente, mostrar o que valho.

Levantou-se, abriu os braços e agitou-os como se fossem asas.

-- Os meus pés levantaram-se do chão? - perguntou. - Levantaram-se? Os pés levantaram-se do chão?

Correu a agitar os braços, como se voasse.

– Oh, paizinho, não seja pateta.

Lizzie correu atrás do pai, que continuava a dar voltas pela sala. Conseguiu, finalmente, alcançá-lo e voltou a alisar-lhe o cabelo e a endireitar-lhe o roupão.

-- Pois sim – disse-lhe. – Talvez consiga voar como um pássaro, mas primeiro não se esqueça de apanhar um pouco de ar e de comer um bom almoço, está bem?

Ele acenou afirmativamente.

-- Pois sim, Lizzie – concordou e, depois, agitou de novo os braços e deu uma pequena gargalhada.

-- Ah, a tia Doreen disse que talvez passe por cá hoje.

O pai estacou. O seu rosto desfigurou-se.

-- A tia Doreen ? – perguntou.

Franziu o rosto e suspirou.

-- Outra vez ela, não!

-- Sim, outra vez ela. Vai fazê-lo regressa à terra.

Ele bateu o pé esquerdo. E bateu o direito.

-- Mas, Lizzie… – gemeu.

-- Nem mas Lizzie, nem meio mas Lizzie. A tia Doreen gosta de si, como eu gosto. E preocupa-se consigo, como eu me preocupo. Portanto, seja simpático com ela.

Os ombros dele descaíram, e os braços penderam-lhe ao longo do corpo. Lizzie pegou na mala da escola e deu um beijo no rosto do pai. Sorriu-lhe meigamente e abanou a cabeça. Parecia um rapazinho, ali parado.

-- Que vou fazer consigo?

-- Não sei, Lizzie – murmurou ele.

Ela hesitou.

-- Não sei se devo deixá-lo entregue a si próprio.

Ele riu-se.

Claro que deves. Tens de ir para a escola, fazer as tuas contas de somar e os teus ditados.

Tinha razão. Ela precisava de ir à escola. Gostava das contas de somar , dos ditados e das suas professoras, assim como do diretor, o Sr. Mint, que fora tão bondoso para com ela e o seu pai.

-- Está bem, eu vou, Agora dê-me um beijo de até logo.

Ele beijou-a na face a abraçaram-se. Depois, ela espetou o indicador:

-- Não se esqueça...

-- Está bem, Lizzie, não me esqueço. Lavar-me. Fazer a barba. Comer um bom almoço. Apanhar muito ar. E ser simpático com a tia D.

-- Muito bem. É isso mesmo.

-- E não me esquecerei de voar.

-- Oh, paizinho!

Ele pôs-lhe a mão nas costas e conduziu-a à porta.

-- Vai – disse-lhe. – Não precisas de te preocupar com coisa nenhuma. Anda, vai para a tua linda escola.

Ela abriu a porta e saiu para o jardim. Lançou-lhe um último olhar.

-- Adeus, Lizzie, até logo.

Atravessou o jardim até ao portão e saiu para a rua.

Parou um momento e olhou para trás, para ele.

-- Vai, filha, eu estou bem.

Ela recomeçou a andar. Ele acenou-lhe até a perder de vista e depois fechou a porta. Agitou os braços a rir baixinho.

-- Pio, pio – disse. – Tirou um pedaço de torrada debaixo da língua e cuspiu-o. – Pio pio – disse de novo. – Pio pio, pio pio.

Depois viu uma mosca a passear em cima da mesa.

Lambeu os lábios – iam, iam – e foi atrás dela.»

Para continuares a ler, requisita o livro na Biblioteca da tua escola.