O homem de água (excerto)
Neste conto de Ivo Rosati, as pessoas comuns são mais rápidas a julgar do que a observar e compreender uma pessoa nova e estranha que, subitamente, aparece na cidade onde moram. Seja por medo ou por preconceito, não reparam nas acções generosas do forasteiro e repudiam-no. Apenas outras criaturas solitárias, como ele, são capazes de o aceitar e de lhe mostrar gratidão.
Autor: Ivo
Rosati
Ilustrações: Gabriel
Pacheco
Tradução: Elisabete
Ramos
Editora:
Kalandraka, 2009
«Alguém tinha
deixado a torneira aberta.
O dono da casa
nunca mais voltou, sabe-se lá por onde andaria. Talvez tivesse ido para as
ilhas Fiji; às tantas andava em busca de fortuna nas minas de ouro azul que
dizem que há em África.
Por fim,
aconteceu que a água, ao acumular-se, transbordar, derramar-se por todo o lado,
fez nascer um homem, um homem azul, transparente e cristalino.
Um
homem de água.
Um homem de
água que, com a última gota, a que lhe formou a madeixa de cabelo ondulada a
meio da testa, de repente se pôs em pé e saltou para fora do lavatório dizendo:
— Mas o que é
que se passa aqui?
Desceu as
escadas e foi para a rua, para voltar ao mar ou ao lago, junto de um canal.
Quem o via,
confundia-o com uma poça, com uma fonte, com um reflexo de água ou até mesmo
com uma alucinação.
— Desculpe,
para onde é que o senho vai?
— Vou dar um
passeio – respondia.
So que não
pode andar por aí a molhar tudo, é ilegal!
— Mas como? Eu
sou assim!
— Chamem a
polícia – gritavam as pessoas –, lá vai esse, que é feito de água e que anda
por aí a salpicar tudo.
A porteira do
prédio perseguia-o porque lhe tinha inundado a entrada e um senhor brandia um
guarda-chuva dizendo que este lhe tinha espirrado para cima para o afogar.
— Sim, sim,
uma onda de seis metros de altura, como as que se vêem nos iunaitedsteitsofsmerica.
— Tape-se –
diziam-lhe –, vista-se, tente congelar-se, talvez assim se torne uma pessoa
normal.
Entretanto,
ele continuava a a passear, silencioso, de noite, junto às paredes, às vezes
regando as flores.
Ajudava os
automobilistas que tinham os vidros sujos, e eles saudavam-no com um aceno.
Deixava-se
lamber pelos cães, enchia as garrafas vazias dos vagabundos e das pessoas que
tinham sede…
Nunca tinha
fome, nunca tinha sede, não sentia necessidade de dormir, nem sequer sabia o
que era “dormir”.
Não precisava
de fazer xixi nem de lavar os pés.
Quem se
cruzava com ele apontava-o, dizendo:
— É ele, é
ele, chamem a polícia
— É o homem de
água, chamem um canalizador, ou tragam um balde.
Quando isto
acontecia, ele procurava uma poça, um regato, uma conduta, metia-se ali dentro
e desaparecia, misturado com a água.
Quando tudo
ficava mais calmo, voltava a si, recompunha-se saindo da água, pingando
bocadinhos de plástico e detritos, cascalho e pastilhas elásticas. (…)»
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