sábado, 2 de maio de 2020

Para leres mais no regresso à Biblioteca: "O homem de água", de Ivo Rosati


O homem de água (excerto)

 

Neste conto de Ivo Rosati, as pessoas comuns são mais rápidas a julgar do que a observar e compreender uma pessoa nova e estranha que, subitamente, aparece na cidade onde moram. Seja por medo ou por preconceito, não reparam nas acções generosas do forasteiro e repudiam-no. Apenas outras criaturas solitárias, como ele, são capazes de o aceitar e de lhe mostrar gratidão.




 Autor: Ivo Rosati

Ilustrações: Gabriel Pacheco

Tradução: Elisabete Ramos

Editora: Kalandraka, 2009




«Alguém tinha deixado a torneira aberta.
O dono da casa nunca mais voltou, sabe-se lá por onde andaria. Talvez tivesse ido para as ilhas Fiji; às tantas andava em busca de fortuna nas minas de ouro azul que dizem que há em África.
Por fim, aconteceu que a água, ao acumular-se, transbordar, derramar-se por todo o lado, fez nascer um homem, um homem azul, transparente e cristalino.

Um homem de água.

Um homem de água que, com a última gota, a que lhe formou a madeixa de cabelo ondulada a meio da testa, de repente se pôs em pé e saltou para fora do lavatório dizendo:
— Mas o que é que se passa aqui?
Desceu as escadas e foi para a rua, para voltar ao mar ou ao lago, junto de um canal.
Quem o via, confundia-o com uma poça, com uma fonte, com um reflexo de água ou até mesmo com uma alucinação.
— Desculpe, para onde é que o senho vai?
— Vou dar um passeio – respondia.
So que não pode andar por aí a molhar tudo, é ilegal!
— Mas como? Eu sou assim!
— Chamem a polícia – gritavam as pessoas –, lá vai esse, que é feito de água e que anda por aí a salpicar tudo.
A porteira do prédio perseguia-o porque lhe tinha inundado a entrada e um senhor brandia um guarda-chuva dizendo que este lhe tinha espirrado para cima para o afogar.
— Sim, sim, uma onda de seis metros de altura, como as que se vêem nos iunaitedsteitsofsmerica.
— Tape-se – diziam-lhe –, vista-se, tente congelar-se, talvez assim se torne uma pessoa normal.
Entretanto, ele continuava a a passear, silencioso, de noite, junto às paredes, às vezes regando as flores.
Ajudava os automobilistas que tinham os vidros sujos, e eles saudavam-no com um aceno.
Deixava-se lamber pelos cães, enchia as garrafas vazias dos vagabundos e das pessoas que tinham sede…
Nunca tinha fome, nunca tinha sede, não sentia necessidade de dormir, nem sequer sabia o que era “dormir”.
Não precisava de fazer xixi nem de lavar os pés.
Quem se cruzava com ele apontava-o, dizendo:
— É ele, é ele, chamem a polícia
— É o homem de água, chamem um canalizador, ou tragam um balde.
Quando isto acontecia, ele procurava uma poça, um regato, uma conduta, metia-se ali dentro e desaparecia, misturado com a água.
Quando tudo ficava mais calmo, voltava a si, recompunha-se saindo da água, pingando bocadinhos de plástico e detritos, cascalho e pastilhas elásticas. (…)»

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