Biblioteca do Centro Escolar do Pontal, Agrupamento de Escolas Poeta António Aleixo, Portimão
sexta-feira, 8 de maio de 2020
terça-feira, 5 de maio de 2020
Para leres no regresso à Biblioteca - "Aventuras da Engrácia", de Maria Alberta Menéres
Aventuras da Engrácia, 1985
Maria Alberta Menéres (1930-2019)
Esta é a história que encerra o livro de Maria Alberta Menéres.
Relata um episódio cruel que pode causar estranheza aos modernos habitantes das
cidades, mas que não é estranho a quem viveu nas áreas rurais.
Este episódio cruel tem como desfecho um ato de compaixão, de
arrependimento e de amor com que nasce a consciência ecológica e moral da
Engrácia.
Maria Alberta Menéres soube sempre tratar as crianças como
pessoas, escrevendo num discurso divertido e acessível, mas sem as
infantilizar. Foi mestre dos ofícios de escrever e de ensinar.
«A Engrácia
agora até se arrepia quando se recorda da história dos passarinhos.
Para dizer a
verdade, só lhe vem à memória essa tal história quando à tardinha se vai sentar
debaixo da velha tília que está ao fundo do quintal da sua casa. Mesmo lá ao
fundo.
Há muita gente
que acha que estas histórias que arrepiam não são para recordar e muito menos
para se contar.
Eu não
concordo com tal atitude pois me parece que tudo o que acontece como esta
história aconteceu poderá ter aproveitamento para alguém. Que aproveitamento,
não sei bem. Só sei que não me vou ralar com isso.
Posto o caso
desta maneira, vamos voltar aos arrepios da Engrácia e à idade remota dos seus
6 anos.
Ao fundo do
quintal, logo a seguir ao canteiro das minhocas, havia uma capoeira. Perdão,
duas capoeiras.
Uma era a
capoeira propriamente dita e a outra não era uma capoeira propriamente dita.
A capoeira
propriamente dita tinha galinhas, um galo e dois perus. Era porém difícil dizer
com toda a certeza quantas galinhas tinha, porque como estavam sempre a entrar
e a sair por um buraco que dava para o ninho onde punham os ovos, a Engrácia
passava a vida a enganar-se na conta, quando as queria contar, acabando sempre
por desistir de tal tarefa.
Nesta capoeira
também havia um pato, uma para e três patinhos feios que andavam sempre atrás
uma dos outros como convinha, em seu andar desajeitado.
Mas deles não
reza está história.
Nem deles nem
dos outros habitantes desta capoeira que era a capoeira propriamente dita, como
já se disse.
Onde a
história cruel se vão desenrolar é na outra capoeira: naquela que, ainda não
explicámos mas já vamos explicar, não era uma capoeira propriamente dita.
Mas tratava-se
realmente de uma antiga capoeira. Agora desabitada. Sempre de porta aberta.
Todos os dias,
ao cair da tarde, era espantosa a chilreada dos pássaros em volta das árvores
do quintal. Havia alguns que, mais distraídos ou mais buliçosos, se enganavam e
sem querer entravam pela porta escancarada desta antiga capoeira.
Certamente
muito admirados, iam bater, quer dizer, embater nas paredes de arame entrançado
de que ela era feita e que, assim, de um momento para o outro, se
transformavam»as paredes de uma grande gaiola, ao ar livre.
Mas livre já
não era o ar que eles respiravam.
Como sair de
tamanha gaiola?
Atordoados e
desnorteados, os passarinhos não davam nunca com a velha porta aberta, ela nem
sabia que a porta ali continuava aberta e que se não se enervassem poderiam
sair por ela tão facilmente como tinham entrado.
Eles nem
sabiam que o podiam saber.
Ora no dia em
que a Engrácia fizera 6 anos, muitas crianças cirandavam por ali, em leves
brincadeiras.
A certa
altura, não se sabe quem é que teve a ideia. Mas que foi uma ideia contagiosa,
ninguém o poderia negar.
Primeiro, a
algazarra de entrar na velha capoeira para a agarrar os passarinhos, que mais
pareciam pequenos pardais.
(...)
Entrou naquela
espécie de gaiola gigante onde a chilreada era quase tão forte como a que
atroava os ares do lado de fora, no alto das árvores grandes do quintal.
"Ontem
foi divertido!" - pensou ela. - "Vou apanhar mais pardais."
Não foi nada
difícil: logo agarrou um pardal pequenino que desorientado se debatia de
encontro às paredes de arame frio.
"Já
agarrei um!" - gritou para si própria.
"Vou
torcer-lhe o pescoço! Não custa nada."
Pôs as mãos
atrás das costas.
E foi quando
se lembrou: mas que disparate! Porquê as mãos atrás das costas?!
"Vou
torcer-lhe o pescoço, sem ser com as mãos atrás das costas! Quero ver tudo.
E viu
perfeitamente o pequeno pardal que nem tentava fugir das suas mãos fechadas.
Que só piava baixinho.
Olhou para os
seus olhos. Para o seu bico entreaberto. Para as penas cinzentas que
estremeciam.
Aninhou-o
de.encontro ao peito e saiu a correr para o ar livre.
Cá fora,
largou-o no ar.
E poderia ter
terminado aqui está história, agora mais alegre. Mas ainda não terminou.
Falta dizer
que a partir deste dia, a brincadeira passou a ser outra: todos os dias ao cair
da tarde, a Engrácia começou a ir àquela capoeira, que não era uma capoeira
propriamente dita, só para agarrar os passarinhos atordoados que nela tinham
entrado por distração e dela não eram capazes de sair. E ao largá-los no ar
livre dava-lhes cada raspanete que só visto!
Nunca contou
nada disto a ninguém.
Agora que já é
bastante mais crescida, já percebe muitas coisas que antigamente lhe pareciam
complicadas. Uma delas é que não prestam as cenas passadas dentro das mãos
atrás das costas. Porque o que nós queremos esconder de nós próprios, nunca
fica escondido.
(...)»
sábado, 2 de maio de 2020
Para leres mais no regresso à Biblioteca: "O homem de água", de Ivo Rosati
O homem de água (excerto)
Neste conto de Ivo Rosati, as pessoas comuns são mais rápidas a julgar do que a observar e compreender uma pessoa nova e estranha que, subitamente, aparece na cidade onde moram. Seja por medo ou por preconceito, não reparam nas acções generosas do forasteiro e repudiam-no. Apenas outras criaturas solitárias, como ele, são capazes de o aceitar e de lhe mostrar gratidão.
Autor: Ivo
Rosati
Ilustrações: Gabriel
Pacheco
Tradução: Elisabete
Ramos
Editora:
Kalandraka, 2009
«Alguém tinha
deixado a torneira aberta.
O dono da casa
nunca mais voltou, sabe-se lá por onde andaria. Talvez tivesse ido para as
ilhas Fiji; às tantas andava em busca de fortuna nas minas de ouro azul que
dizem que há em África.
Por fim,
aconteceu que a água, ao acumular-se, transbordar, derramar-se por todo o lado,
fez nascer um homem, um homem azul, transparente e cristalino.
Um
homem de água.
Um homem de
água que, com a última gota, a que lhe formou a madeixa de cabelo ondulada a
meio da testa, de repente se pôs em pé e saltou para fora do lavatório dizendo:
— Mas o que é
que se passa aqui?
Desceu as
escadas e foi para a rua, para voltar ao mar ou ao lago, junto de um canal.
Quem o via,
confundia-o com uma poça, com uma fonte, com um reflexo de água ou até mesmo
com uma alucinação.
— Desculpe,
para onde é que o senho vai?
— Vou dar um
passeio – respondia.
So que não
pode andar por aí a molhar tudo, é ilegal!
— Mas como? Eu
sou assim!
— Chamem a
polícia – gritavam as pessoas –, lá vai esse, que é feito de água e que anda
por aí a salpicar tudo.
A porteira do
prédio perseguia-o porque lhe tinha inundado a entrada e um senhor brandia um
guarda-chuva dizendo que este lhe tinha espirrado para cima para o afogar.
— Sim, sim,
uma onda de seis metros de altura, como as que se vêem nos iunaitedsteitsofsmerica.
— Tape-se –
diziam-lhe –, vista-se, tente congelar-se, talvez assim se torne uma pessoa
normal.
Entretanto,
ele continuava a a passear, silencioso, de noite, junto às paredes, às vezes
regando as flores.
Ajudava os
automobilistas que tinham os vidros sujos, e eles saudavam-no com um aceno.
Deixava-se
lamber pelos cães, enchia as garrafas vazias dos vagabundos e das pessoas que
tinham sede…
Nunca tinha
fome, nunca tinha sede, não sentia necessidade de dormir, nem sequer sabia o
que era “dormir”.
Não precisava
de fazer xixi nem de lavar os pés.
Quem se
cruzava com ele apontava-o, dizendo:
— É ele, é
ele, chamem a polícia
— É o homem de
água, chamem um canalizador, ou tragam um balde.
Quando isto
acontecia, ele procurava uma poça, um regato, uma conduta, metia-se ali dentro
e desaparecia, misturado com a água.
Quando tudo
ficava mais calmo, voltava a si, recompunha-se saindo da água, pingando
bocadinhos de plástico e detritos, cascalho e pastilhas elásticas. (…)»
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